Padre Paulo Sérgio Barbosa




Padre Paulo Sérgio Barbosa estará postando em nosso Blog uma sequencia de temas, acompanhe, são uma boa orientação teológica sobre o céu inferno e o purgatório.










Sumário
1. Escatologia: Céu, inferno e purgatório
2. U m novo céu e uma nova terra
3. Descobrir o sentido da vida: o desafio.
4. O Mundo assim como Deus o quer.
5. Inferno e um Deus que ama.
6. A Ciência que descobriu a morte
7. Será que haverá vida depois da vida
8. Reencarnamos ou ressuscitamos?
9. Um purgatório que não é fornalha
10. O mundo assim como Deus o quer





1. Escatologia: Céu, inferno e purgatório


Referente às questões sobre o que será aquela possibilidade sombria, chamada inferno, em geral, as pessoas parecem ter respostas muito claras. O imaginário religioso descreveu aquela possibilidade com exatidão e ricos detalhes.
Quando, porém se trata de céu, as descrições, em geral, permanecem sem cor e o imaginário religioso fica muito vazio. A iconografia apresenta-nos anjos jubilosos e coros entoando aleluia; os pintores recorrem ao ouro e o máximo que muitas pessoas conseguem imaginar é um tipo de corte celestial, funcionando como a de algum imperador do passado ou de algum monarca contemporâneo. Com isso, a imaginação pára e o homem moderno, acostumado à democracia e participação, ou sonhando em construir estruturas igualitárias e participativas, pergunta-se o que ele vai fazer na pompa de uma tal corte.
Aqueles que gostam de coros gregorianos, ainda podem imaginar-se como integrantes de algum coral celeste, enquanto que os adeptos do hard-rock ficam meio desapontados diante da questão, pensando como os seus ritmos preferidos poderiam ser encaixados naquelas cerimônias majestosas.
O resultado de toda essa situação: a maioria dos cristãos, no fundo, não sabe como imaginar aquilo que a sua religião lhes apresenta como o seu último destino, como resposta a todos os seus anseios e cume de toda a sua existência, isto é, a situação de céu. Por causa da falta de alguma verdadeira descrição, este céu, para muitos, não apresenta grandes atrativos e em vez de preocuparem-se com ele, preferem organizar a sua vida terrena de maneira mais agradável possível. O céu, "deixam para os pássaros e os padres", assim como o famoso poeta Heine tinha costume de dizer.
É diante de todo esse quadro decepcionante, que se formula com vigor renovado a necessidade de refletir sobre aquilo que a religião cristã nos apresenta como o nosso destino final. Como imaginar aquilo que Deus tem planejado como último e eterno fim de nosso ser?
A linguagem religiosa fala de vida em plenitude. Como saber o que é vida em plenitude? Vale a pena recorrer às nossas próprias experiências de vida, para que possamos compreender melhor o profundo significado das expressões com as quais se tenta falar de céu: "vida eterna", "vida plena", "felicidade sem fim".
Caso a nossa vida se apresente marcada por dores, problemas, doenças, tensões e desgraças, ninguém falaria de uma vida em plenitude. Isso significa que todas aquelas situações negativas e toda e qualquer outra experiência negativa que podemos imaginar, não podem fazer parte daquilo que é céu. Quando ficamos sozinhos, isolados, em situação de solidão ou abandono, não temos a impressão de viver em plenitude. Uma vida em plenitude deve ser diferente. É o mínimo que podemos esperar. Na realidade, porém, devemos esperar o máximo e além do máximo.
O grande visionário autor do Apocalipse descreve esse máximo numa visão grandiosa que resume tudo aquilo que imaginamos ser a situação existencial de céu: Eis a morada de Deus com os homens. Ele habitará com eles. Eles serão seu povo e ele será o Deus que está com eles. Ele enxugará toda lágrima de seus olhos. Já não haverá morte. Não haverá mais luto, nem clamor, nem sofrimento, pois o mundo antigo desapareceu (Ap 21, 3-4).
Aqui não se fala nem de cortejos nem de cânticos, mas de convivência harmoniosa entre pessoas, de vida sem desgraças e de comunhão com aquele que nos ama, Deus, o eterno apaixonado por nós, os seus filhos amados. Esta convivência não é descrita como sujeita a rituais litúrgicos e regras de estratificação social, mas como comunhão e participação das pessoas, não só com Deus, mas também entre si. Não haverá ódio nem inveja nem rejeição de uns pelos outros.
Em vez disso, retrata-se uma convivência harmoniosa, marcada pela experiência de ser amado, de ser amparado na ternura de um Deus apaixonado, sem nenhuma estratificação, nem conforme critérios sociais, nem de santidade nem de dignidade: eis a situação de céu. Nas vezes em que o próprio Jesus descreve tal estado, ele recorre a imagens de festa, de casamento e de banquete.

VIDA PLENA

Quando Jesus evoca a imagem de banquete e de festa de casamento, ele imagina aquilo que vivia em sua cultura: festa, transbordando de alegria, à qual todos estão convidados. Celebração da vida, sem marginalização nenhuma. Consumação e plenificação de todos os anseios do coração humano: assim devemos imaginar céu. Uma situação de vida plena, onde ninguém será excluído e ninguém abaixado. Comunhão e participação de todos os seres humanos, sem distinção de classes e raças, onde não haverá nem senhores nem escravos, nem chefes e subordinados, nem privilegiados e marginalizados, mas irmãos e irmãs.
E esses irmãos e irmãs não serão almas sem estrutura, mas pessoas plenas, isnteiras. Cada uma com as suas características e as suas capacidades. Todas as potencialidades plenamente evoluídas. Cada um aceito por todos e todos aceitando cada um, assim como ele ou ela é. Enfim, cada um poderá ser ele mesmo, sem máscaras e sem rejeição. E essa comunhão e participação de todos, é culminada pelo fato de Deus também fazer parte dela. Presente e visível a todos, de tal maneira que, nele, enfim, todos os anseios do coração, jamais satisfeitos, serão saciados.
Nessa harmonia plena, da qual a harmonia estática de dois namorados só é uma pequena imagem, nesta harmonia consigo mesmo, com Deus e com todos os seus irmãos e todas as suas irmãs, o homem, enfim, terá condição de realizar tudo aquilo que sempre sonhou. Existindo de nova maneira, abaixo de um novo céu e numa nova e transformada terra (Ap 21,5Is 65,17-19), cada um chegará à realização plena de sua própria personalidade. O artista será artista em plenitude, o matemático será matemático em plenitude, e o pescador, por que não?, poderá pescar como sempre sonhou.
O universo inteiro, na sua imensidão, vai se oferecer para ser descoberto. E, quem sabe, não só o universo como o imaginamos, mas inúmeros outros universos paralelos, dos quais a cosmologia, hoje, só fala em termos hipotéticos. E todos esses universos estarão transparentes para aquele que está atrás de tudo: Deus, o seu criador. Descobrindo os universos, descobriremos sempre novas faces dele. E descobrindo Deus, explorando Deus, perdendo-nos em Deus e apesar disso permanecendo aquilo que somos, viveremos o êxtase de vida plena.




 2. Um novo céu e uma nova terra

   Acima refletimos sobre aquela realidade existencial que chamamos de "Céu". Realidade concreta, esperada por muitos com confiança e fé. Realidade, porém, que para a maioria daqueles que nela acreditam, se esgota na expectativa de uma situação de céu individual, de salvação pessoal, de vida plena para si mesmo.
    Tal expectativa, com certeza é justificada, mas, é muito pequena. A sua esperança gira em torno de uma perspectiva individualista e isso, sobretudo, porque, durante séculos, o ensinamento religioso concentrou-se nessa perspectiva. Todavia, o que em muitos casos se esqueceu, por causa de todo esse individualismo e de seu subseqüente moralismo individual, é o fato de que os projetos de Deus sempre superam a esfera do indivíduo. Os planos de Deus vão muito além até da história da humanidade como um todo. Os projetos salvíficos de Deus abrangem o cosmo na sua totalidade.


Desde o momento daquela inimaginável explosão, o Big Bang, com a qual o cosmo começou, Deus
 envolveu-se na história deste cosmo e na sua evolução. Por meio de um processo evolutivo de mais de 13 bilhões de anos, Deus está presente no universo inteiro de maneira ativa. E Ele ficará presente também no futuro, agindo dentro da inimaginável dinâmica dessa evolução. Respeitando a liberdade de suas criaturas e ficando escondido num gigantesco jogo de acasos, Ele estará presente também nos bilhões de anos a seguir. Ele ficará presente, até que o cosmo inteiro, na sua totalidade de bilhões e bilhões de galáxias, chegue ao seu último fim. Fim este que não é a destruição de tudo, mas a sua plenificação. Uma transformação progressiva, pela qual, o cosmo inteiro vai se tornar transparente diante de Deus, seu criador e seu último destino. Plenificação inimaginável, realizada por Deus. Cume e último fim de tudo aquilo que é.
Salvação do cosmo inteiro, pela vontade de Deus. A humanidade inteira faz parte desse processo. Ela não só faz parte, mas está sendo chamada a participar de maneira ativa. A razão de nossa existência não é sermos espectadores passivos, enquanto Deus, de maneira mágica e milagrosa, realiza os seus planos. A última razão de nosso ser é participar, de maneira ativa, do processo de transformação do cosmo, assim como ela está sendo sonhada por Deus, que escolheu a cada um de nós, para que sejamos os seus colaboradores.
Ele nos chama a compreender que o seu projeto cósmico realiza-se à medida em que participamos dele. Em vez de aguardarmos de maneira passiva um fim do mundo - que da forma como as gerações passadas o imaginaram, nunca vai acontecer - somos chamados a fazer progredir a história deste mundo em direção àquilo que é a sua última finalidade. E esta finalidade, repito, não é a sua destruição, mas a transformação conforme os planos de Deus. Ponto Ômega da evolução cósmica, onde o cosmo inteiro chega a uma situação de harmonia e de união com o seu criador.
Onde Jesus, o Cristo, segunda pessoa da Trindade, torna-se presente em tudo e em todos. Onde o Espírito de Deus, amor pessoal, enche tudo aquilo que é, de tal maneira que todas as pessoas humanas e todos os outros seres irão se encontrar numa felicidade plena; num novo relacionamento pleno entre si e com tudo aquilo que é o mundo e o cosmo. Eis o projeto que Deus tem e do qual fazemos parte. O nome desse projeto é "REINO DE DEUS" e, mais uma vez, nos confrontamos com o triste resultado de uma catequese espiritualizante do passado.
Para a maioria dos cristãos, tal Reino de Deus nada tem a ver com o mundo e com os seus processos estruturais. Para a maioria, é algo espiritual, ou algo que vem depois da morte, ou uma situação celeste, ou, no máximo, uma atitude alcançada no seu próprio coração, dentro do qual, este Reino já começou. Porém, quem assim pensa, se engana, porque a sua concepção simplesmente não corresponde àquilo que o nosso Deus, quando se manifestou de maneira mais clara em Jesus Cristo, nos revelou.
Seguindo as suas palavras e aquilo que, antes dele, podemos achar nas palavras dos profetas e no livro de Daniel, encontramos algo bem diferente. Para Jesus e para os profetas, o Reino de Deus não é algo estático e espiritual. Reino de Deus é o nome para uma situação, onde Deus pode reinar em plenitude. Uma situação, onde os valores, os critérios e os parâmetros desse Deus são seguidos por todos. É assim que a Bíblia compreende Reino de Deus: como situação histórica alternativa à atual. Essa situação histórica, porém, não será realizada por Deus num ato mágico, do qual somos simples espectadores.
Ela, bem pelo contrário, realiza-se num processo de conversão e de transformação histórica deste mundo. Tal processo, na realidade, já começou. Ele já está em andamento e seus atores e sua força motora somos nós. Nós, homens e mulheres, somos chamados a nos envolver no processo dinâmico de transformação desta história e deste mundo.
Sobre os elementos chaves desse processo na sua dimensão terrena, o próprio Deus, na pessoa de Jesus, informou:
  • Todas as situações de injustiça devem ser transformadas em situações de justiça.
  • Onde pessoas combatem e pensam resolver as suas divergências por meio de guerras, temos que conseguir mecanismos e situações de paz.
  • Todo egoísmo, seja individual, seja estrutural, deve ser superado e substituído pela fraternidade.
  • Em vez de mentiras, manipulações e enganos mútuos, tanto entre indivíduos, como nas grandes estruturas sociais, políticas, econômicas ou religiosas, deve-se chegar à verdade.
  •     Ocritério dominante que rege a relação entre as pessoas, os grupos, as sociedades e os povos não pode ser o egoísmo e a ganância, mas o amor.
Eis o projeto histórico de Deus.
Um projeto dinâmico e transformador, que questiona todas as atuais estruturas.
Um projeto revolucionário, que até deixa com dúvidas e insegurança muitos daqueles que sempre pensaram poder satisfazer Deus com celebrações bonitas e orações suntuosas.
O projeto que Deus tem para este mundo vai muito além de tudo isso.
Mas, esse processo supera de longe o destino do indivíduo. Ele abrange o mundos inteiro e toda a sua história. Mas, este mundo inteiro e todas as suas estruturas, por sua vez, fazem parte de um processo evolutivo maior ainda. Processo este, através do qual Deus, com a colaboração de suas criaturas, realiza o seu projeto final: um novo céu e uma nova terra.
Uma situação de plenificação de tudo que é. Ponto Ômega da criação, onde fica evidente para todos os seres que, no coração do cosmo, está Deus. Nela, os nossos esforços de missionar este mundo chegarão ao seu fim, porque é ali que compreenderemos que a verdadeira missão do mundo é sua transformação, conforme os critérios do Reino de Deus, mencionados acima.
Na medida em que já, agora, homens e mulheres se engajam nessa tarefa, eles e elas não só se tornam colaboradores de Deus, mas também descobrirão a resposta àquela pergunta que inquieta tantas pessoas hoje: "Qual é o sentido de minha vida?".








3. DESCOBRIR O SENTIDO DA VIDA: O DESAFIO

                                                                                                        A reflexão sobre o novo céu e a nova terra, com a qual nós nos preocupávamos em apresenta acima, soa muito bem aos ouvidos de muitos cristãos, mas, ao mesmo tempo, nos confronta com um problema tremendo, pois enquanto alguns se deixam entusiasmar por esta proposta, para muitos outros, ela não tem qualquer significado. No máximo, é mais uma utopia, num quadro social e religioso, onde tantas outras utopias já foram formuladas, para depois se revelaram vazias e terminarem no fracasso total.
É assim que, hoje, vive muita gente: decepcionada com a proposta apresentada; decepcionada, no fundo, com todas as propostas das religiões tradicionalmente institucionalizadas. E, assim, se afastam. Tentam preencher o vazio de suas vidas com outros conteúdos e, numa sociedade que conta exatamente com esse vazio existencial, não faltam propostas alternativas: sexo sem compromisso, consumo desenfreado, religião como conforto espiritual...
A questão é que, depois daquele momento, se volta ao antigo vazio, e as esperanças de ter encontrado, numa espécie de emocionalismo religioso, a satisfação douradora, se transforma, para a maioria, numa frustração ainda maior. A resposta, frente à necessidade de um sentido existencial, não é sequer mencionada e a vida das grandes massas permanece num vazio de proporções nunca antes constatadas. Poucos têm consciência de tal vácuo. Um certo contingente deles busca respostas nos caminhos convencionais de épocas passadas; na maioria dos casos sem realmente achar soluções duradouras. Em geral, as respostas tradicionais não se aplicam mais a uma realidade que difere fundamentalmente até da sociedade de quarenta anos atrás.
Motivados pelo medo do novo, muitos tentam recolocar o vinho novo nos antigos odres velhos, pintando, no máximo, os odres com uma nova cor. O questionamento a respeito do sentido da vida e deste mundo permanece sem respostas para segmentos cada vez maiores da população. Eles se afastam de uma Igreja, da qual, no fundo, não esperam mais resposta nenhuma a seus problemas. Quem tem condições financeiras, se permite o luxo de sessões psicológicas, nas quais se analisa a possível existência de motivações inconscientes.
A grande massa do povo, porém, nem esse luxo tem e, conseqüentemente, fica com as suas motivações encobertas e à mercê de uma indústria de diversão que faz de tudo para acabar com a indagação pelo sentido. Frente a tal situação, podemos reagir com indignação, culpando as pessoas por não quererem mais ouvir as tradicionais explicações religiosas. - Ou podemos tentar compreender a maneira de pensar daqueles que se afastaram da religião, porque foram decepcionados ou frustradas pelas respostas dadas. É esse o caminho proposto pelas reflexões aqui apresentadas.
É um caminho que muito tem a ver com Missão. Um caminho não no sentido tradicional de uma proposta pronta, apresentada àqueles que não sabem, mas muito mais no sentido de um pedido. Pedido de diálogo frente a um mundo que se organizou sem a nossa proposta religiosa tradicional. Pedido de atenção frente a uma nova geração, para a qual os antigos caminhos religiosos são suspeitos, mas que, de outro lado, busca desesperadamente um sentido para a sua vida e para este mundo; muitas vezes sem estar consciente dessa busca.
As bebedeiras de fim de semana soam como gritos de socorro, e a troca frenética de parceiros sexuais nada mais revela do que a busca frustrada de algo que vai além das propostas de toda indústria do prazer: um novo céu e uma nova terra. Na medida em que as religiões, agora e no futuro, se tornarem capazes de apresentar esse novo céu e essa nova terra como algo que vale a pena ser buscado, elas, de novo, terão adeptos. E se essas Igrejas falharem diante desse desafio, esta sociedade de fato corre o perigo de tornar-se assim como já está sendo chamada em certas publicações atuais: uma sociedade pós-cristã.
Para que isso não aconteça ou para que a tendência já existente possa ser revertida, vale a pena responder ao desafio. Responder não com as respostas antigas que só vão satisfazer o grupo cada vez menor daqueles que, na religião, buscam "ilhas do passado", onde é possível fugir diante dos desafios de uma sociedade e de um mundo em processo constante de transformação. Em vez de querer agradar a todo preço a todos aqueles que gritam pelos odres velhos, uma atitude missionária que realmente merece tal nome deve lembrar-se da ousadia de seus grandes representantes e começar um trabalho, em cujo centro só pode haver esta preocupação: recuperar as utopias perdidas.
Tal recuperação começa com a tomada de consciência de que os integrantes de nossas sociedades pós-industriais vivem uma crise de sentido sem precedentes. Conhecer os vários enfoques dessa crise pode tornar-se um ponto de partida para a sua compreensão. E essa compreensão, por sua vez, pode nos incentivar a buscar novas respostas para a superação da crise.
Mas, devem ser respostas que não repitam os velhos chavões de uma moral não mais aceita por muitos. Devem ser respostas que não se restringem aos antigos conselhos de uma psicologia, cujo objetivo era a formação de personalidades adaptadas, e cuja concepção de personalidade, por sua vez, reduzia a personalidade a um jogo de impulsos endógenos e estímulos externos. O homem de hoje precisa mais do que conselhos práticos sobre como superar as suas frustrações. Para recuperar o sentido de sua vida, ele deve recuperar a sua dimensão de "sonhador de utopias".
Ele precisa de uma nova visão do mundo e, dentro desse mundo, precisa conhecer o papel da pessoa humana. Fazem parte dessa visão todos os conhecimentos da psicologia. Mas estes conhecimentos não esgotam a questão, mas só a iniciam. Isso, porque o ser humano é mais que psicologia e, também, mais do que o resultado de constelações socio-políticas e econômicas.
O ser humano é, basicamente sonhador do futuro. Sonhador de utopias. Mas, dessas utopias, faz parte a dimensão do transcendente. Faz parte a dimensão de Deus. Sem essa dimensão, não há utopia e, sem ela, toda busca de sentido permanece uma busca fragmentária e perdida. O homem permanece um ser em eterna busca de dimensões do transcendente.
No fundo, encontramos, nessa busca, a antiga verdade, formulada pelo profundo conhecedor do psiquismo humano, Santo Agostino. É válido até hoje a sua palavra sobre o coração humano que está insatisfeito, até que alcance o seu repouso final, no ser infinito de Deus.
Não pensem que vamos começar a propor a conversão religiosa como condição indispensável para a solução do problema da perda de sentido. Tal resposta seria simplista demais. O que queremos dizer é que o caminho pelo sentido de sua vida não pode excluir essa perspectiva, como se ela não existisse. O fato é que o ser humano, como ser multidimensional, também faz parte de dimensões que ultrapassam a psicologia.
Não queremos excluir essas dimensões, mas, pelo contrário, incluí-las numa visão global da pessoa humana. Visão esta que, numa perspectiva holística, tentará juntar de novo as partes nas quais o homem foi dividido.
A partir de uma tal visão, tentaremos, no decorrer das próximas reflexões, buscar um caminho existencial, para que o integrante de um mundo pós-moderno e talvez pós-cristão possa recuperar aquilo que, como único caminho, é capaz de trazer a felicidade: o sentido da vida.




Bibliografia
"Escatologia da Pessoa" de Renold J. Blank, Paulus, 3.ª ED./2000, 343 PÁG.s "A morte em questão" de Renold J. Blanck, Ed. Loyola n.º 2.ª ed. 2001




AS TENTAÇÕES DE SE DEIXAR SEDUZIR POR OFERTAS ENGANOSAS

O
s mecanismos da atual sociedade neoliberal não estão interessados em pessoas humanas que acharam o sentido de sua vida. Quem achou o sentido de sua vida, não mais está frustrado. Quem descobriu o rumo de sua existência, se tornou feliz. Mas, pessoas felizes não podem ser convencidas de que precisam comprar mais produtos, que necessitam de novas roupas, novos carros, televisores maiores, panelas mais sofisticadas e papel de toalete perfumado. Pessoas felizes resistem às tentações de um sistema, cujo único objetivo é vender, e vender cada vez mais, para assim garantir o crescimento econômico, para maximizar o lucro e aumentar o fluxo de dinheiro até um nível, onde se esqueça até a razão pela qual se compra. A compra se torna sentido em si e cada um que não compra pode ser chamado de a-social.
Para que um tal sistema funcione, os seus integrantes devem ser mantidos num constante estado de frustração. A esses frustrados, promete-se a felicidade pelo ato da compra. Promete-se a eliminação das suas frustrações, através da posse de mais produtos. Ao mesmo tempo, porém, aumenta-se o grau de sua frustração, mostrando por meio de um sistema sofisticado de propaganda, tudo aquilo que ainda não possuem e que devem possuir, para serem felizes. Quanto mais frustradas as pessoas se tornam, mais compram. Desta maneira, a ciranda não tem fim, porque, uma vez comprado o produto, já se oferece o próximo, melhor e mais sofisticado ainda, e através de sua posse, promete-se felicidade maior.
Em busca desta felicidade, as pessoas compram e compram e correm atrás do dinheiro necessário para poder comprar mais. E quanto mais correm, tanto mais frustradas ficam, até que este círculo vicioso, finalmente, conduz ao colapso, não do sistema, mas da pessoa. Para quebrar os mecanismos de tal sistema, primeiro, se deve conhecer esses mecanismos. Para que se possa perceber a falsidade das promessas, é preciso a conscientização sobre os verdadeiros objetivos que estão atrás dos mecanismos de sedução.
No seu centro, há a promessa da felicidade que alcançarão aqueles que fazem parte do sistema. Os incluídos. Aqueles que aceitam as propostas consumistas. Na sua base, há a criação de todo um mecanismo de conversão, através do qual se faz esquecer os verdadeiros valores, substituindo-os por outros, falsos. E, no seu eixo principal, há a tentativa bem sucedida de tampar o anseio pelo sentido, por respostas que prometem saciar tal anseio, mas que, na realidade, só se aproveitam dele, para lucrar.
Enquanto as pessoas não percebem esses mecanismos, ficam presas no sistema. Tornando-se conscientes, porém, começam a dar os primeiros passos rumo à sua libertação. Um desses primeiros passos é a recuperação da capacidade de conviver com frustrações.


APRENDER A CONVIVER COM AS NOSSAS FRUSTRAÇÕES

A nossa libertação do sistema começa por um caminho que, à primeira vista, parece paradoxal. Ela começa com a confissão de que há em nós desejos e anseios, aos quais a indústria de consumo não pode responder. Aos quais, aliás, nenhuma indústria de prazer conseguirá responder. Ela continua com a afirmação, diante de si mesmo, de que ter anseios e desejos não satisfeitos é legítimo e normal. Tais desejos não satisfeitos e as suas conseqüentes frustrações fazem parte do ser humano. Eles constituem o seu modo de ser.
Para quem aprendeu esse dado fundamental, a libertação, num terceiro passo, se realiza pela conscientização de que muitos dos desejos e anseios da pessoa humana não podem ser satisfeitos e nunca poderão ser satisfeitos. O homem, por natureza, é marcado por um profundo anseio de felicidade; por natureza, sonha com algo que o transcende, que vai além de todas as suas limitações. Por causa dessa sua tendência rumo ao transcendente, sempre ficará insatisfeito.
Descobrimos, assim, o fato paradoxal: o estado de frustração faz parte do estado natural de cada um de nós. Se quisermos ser felizes, primeiro, devemos reconhecer que a felicidade plena não pode ser alcançada. Por causa disso, devemos aprender a ser frustrados. Devemos aprender a viver com as nossas frustrações. Vou até mais longe ainda: devemos aprender a compreender as nossas frustrações como algo positivo, natural, que faz parte de nossa condição de vida como seres humanos.
Reconhecer tal fato já é o primeiro passo, por meio do qual nos libertamos da ditadura da busca constante pelo prazer. Não precisamos de prazer ininterrupto. Somos capazes de viver sem prazer. Somos capazes de suportar uma dose bastante alta de dor e de frustrações. E suportando tais situações, não quebraremos, mas, pelo contrário, cresceremos em nossa estrutura pessoal. Cresceremos como pessoas e como indivíduos. Estamos assim confrontados com a verdade incômoda e paradoxal de que, suportando dor e passando por frustrações, nos tornamos pessoas mais desenvolvidas e indivíduos mais ricos.
SUPORTAR A DOR, EM VEZ DE DEIXAR-SE ANESTESIAR
A concepção acima contradiz toda a mentalidade de nossa época. O tempo atual, talvez como nunca antes, está marcado por uma mentalidade que poderíamos denominar de "mentalidade da anestesia". Vivemos numa época, onde a dor não pode existir. Quando ela aparece, já está sendo anestesiada. Vivemos numa cultura de anestésicos. Isso começa com a dor de cabeça e com a injeção para evitar a dor provocada pelo tratamento no dentista. Para que aquela injeção, por sua vez, não cause alguma dor, se anestesia primeiro o lugar, onde a agulha da seringa entra.
O que constatamos no nível da dor física continua no nível da dor psíquica. Ela está sendo anestesiada. Ela não pode acontecer, e quando acontece, se oferecem mil maneiras para fugir dela, para eliminá-la. O resultado é que vivemos num estado constante de anestesiados, ou numa constante corrida através de novos anestésicos. Quem está com algum problema começa a comer mais, ou a beber mais, ou a consumir mais, comprando roupas e calças e artigos eletrônicos para se consolar. Quem está com algum problema tenta esquecer através de música, de dança, de sexo, de esportes radicais ou de pílulas contra dor e depressão.
Quem está diante de um problema começa a fumar, a beber ou a usar drogas. Quem está diante de um problema, se suicida; solução que dispensa o uso de qualquer anestésico a mais. Solução, porém, que se revela, em última análise, também como fuga diante de um problema que causou dor. O resultado de toda essa correria é que estamos perdendo, cada vez mais, a capacidade de suportar a dor. Sem suportar dor, porém, a pessoa não cresce como pessoa.
Assim, estamos, de novo, confrontados com um dos paradoxos de nossa existência: para achar o sentido de nossa vida, devemos crescer; para crescer, porém, devemos ser capazes de suportar e de viver certo nível de dor, de sofrimento e de frustração. Esta dor e esta frustração, o sistema consumista de hoje tenta anestesiar com todos os meios. Como anestesiados, porém, não vamos evoluir como pessoas.
E, não evoluindo, não vamos achar o sentido de nossa vida. Querendo, porém, achar tal sentido, devemos primeiro aceitar que nem toda dor pode ser anestesiada. Devemos reconhecer que a dor, e sobretudo a dor psíquica, tem valor. Devemos nos tornar capazes de suportar tal dor, de carregá-la, e carregando-a, vamos crescer como pessoas. Tornando-nos pessoas evoluídas, estamos dando os primeiros passos rumo à descoberta daquilo que é o sentido de nossa vida. Descoberta fascinante e que nos tornará felizes.






Transformar os fracassos da vida, em impulsos para um novo começo

Q
uem vive, está sujeito a frustrações, e quem é capaz de suportar a dor de tais frustrações, cria as possibilidades para viver. Tal conclusão circular não é tautologia, mas profunda verdade existencial. A vida nos confronta com desafios e, à medida que o indivíduo se torna capaz de enfrentá-los, ele cresce como pessoa e encontra sentido.
Vimos, nas reflexões dos capítulos anteriores, alguns dos mecanismos que, na sociedade atual, parecem impedir exatamente essa atitude ativa da pessoa. É contra eles e contra toda a mentalidade manipuladora, nela escondida, que devemos reagir. É contra a tendência de anestesiar o ser humano, que devemos protestar.
Ela fragiliza o ser humano. Como conseqüência, as pessoas desenvolvem toda uma série de mecanismos de fuga, através dos quais, tentam escapar das tensões da vida. O resultado, porém, não é o esperado. Em vez de encontrar conforto e sentido, crescem as fobias, o que finalmente conduz a uma atitude de autopiedade cada vez mais acentuada.
Olhando para si mesmo e lamentando a inutilidade de sua vida, ninguém abre caminhos, rumo a novos horizontes de sentido. É necessário, então, reagir, saindo de si mesmo e abrindo-se a novas experiências. É verdade que tais tentativas já existem. Há jovens que reagem à sociedade de anestésicos, através de maneiras radicais. Existem os grupos de "suspensão - ou perfuração humana", cujos membros tentam testar os limites humanos, provocando em si mesmos todo tipo de dor, até os limites do suportável. Os adeptos dessas práticas dizem que, através da dor, se tornam capazes de experimentar até "algo de transcendente".
Sendo verdade que a dor confronta o ser humano de maneira mais radical com ele mesmo, podemos até compreender tais tentativas. Mas, apesar disso, os argumentos não convencem. Há nelas muitos elementos que as aproximam de atitudes masoquistas e patológicas. De outro lado, porém, permanece o desafio de que, para achar o sentido da vida, a pessoa deve enfrentar a vida. Só que, fazendo isso, ela sempre será frustrada. É exatamente a dor dessa frustração que se deve aprender a suportar e a superar. Fazendo isso, o homem iniciará o primeiro passo, para abrir-se à vida.
Na medida, porém, que se abre, descobrirá nela o seu sentido escondido. Não o encontrará por causa das frustrações que a vida provoca, mas porque não se deixa abalar nem aniquilar pela dor dessas frustrações. Na caminhada da vida, porém, além de frustrações, vamos experimentar também fracassos. Os nossos planos não darão certo e os nossos projetos serão rejeitados ou se mostrarão inviáveis. Pode ser que, simplesmente, não sejamos capazes de realizar algo que gostaríamos de realizar, mas, as circunstâncias não o possibilitaram ou a nossa própria fraqueza nos impediu. Em uma palavra: fracassamos.
Fracassando, muitos perdem a sua auto-estima, ficam infelizes, sentem-se fragilizados ou começam até a sentir aquilo que chamamos de "vazio existencial". Assim, as tentativas mal sucedidas, que em si também poderiam contribuir para a descoberta do sentido da vida, para muitos só se tornam sinais de sua imaginária incapacidade. Muitos, diante de um fracasso, reagem assim, e como conseqüência, param de tentar outra vez e se abandonam à dor, desenvolvendo, às vezes, aquilo que podemos chamar de um verdadeiro "complexo de vítima". Deixam-se, portanto, abalar e entram numa espiral cada vez mais apertada de dúvidas e de inseguranças. Caso seus fracassos tenham algo a ver com a sua convicção religiosa, então carregam até complexos de culpa religiosa que, por sua vez, aumentam a sua infelicidade e diminuem a auto-estima.
Nesse mecanismo, entram em mais uma daquelas cirandas sem fim, onde a pessoa vira incessantemente em torno de si mesma e de seu fracasso, sem achar nenhuma saída. É nessa situação que se deve buscar uma atitude alternativa. Não adianta deixar-se envolver num círculo vicioso de autocompaixão. Não adianta lamentar ou deixar-se anestesiar. Também não adianta envolver-se em complexos de culpa e autoacusação. Em vez de deixar-se fragilizar e aumentar um verdadeiro déficit de auto-estima, é necessário optar por um caminho oposto. Deve-se ter a coragem de aceitar o seu fracasso como tal, e começar algo diferente. Deve-se reconhecer que a tentativa não deu certo. Deve-se admitir que os esforços deram errado. E depois de tudo isso, é necessário que a pessoa, apesar disso, acredite que não vale menos.
Ela deve se conscientizar de que não é o único ser no mundo a quem experiências de fracasso acontecem. Fracassos fazem parte da experiência de vida e, em todo fracasso, no mínimo, pode-se aprender que o caminho escolhido não era o certo. Caso isso acontecer, em vez de desistir, comece de novo! Busque uma outra maneira de agir. Ache um outro caminho, descubra outros meios! Em vez de ficar imobilizado pelo fracasso de seu empreendimento, seja ele no campo profissional, social, econômico ou existencial, transcenda o seu fracasso e inicie uma caminhada diferente. Mesmo que seja o fracasso de seu namoro ou de sua vida profissional.

Todo fracasso, além de ser o término de uma tentativa, é também a possibilidade de um novo começo.  
A nossa vida, em muitos casos, se apresenta como a vida daquele sábio que ficava sentado anos e anos na estação, aguardando aquele trem, com o qual tinha sonhado que lhe traria o sentido de sua vida. Só que aquele trem demorou. Nunca chegava e, de novo, o sábio ficava diante do fracasso de suas expectativas. Então, para fazer passar o tempo, começou a ajudar as pessoas que saíam dos trens. Começou a carregar as suas malas, a indicar-lhes o caminho, começou até a cuidar de seus filhos e de seus cachorros. Ajudava aqui e dava uma mão ali, e assim o tempo passava e o homem se tornava cada vez mais velho. Mas muitas pessoas ficavam felizes por causa de sua ajuda.
Os anos passaram, e finalmente, para aquele homem chegou a morte. E naquele momento, quase já sem condição de se mexer e sem possibilidade de enxergar, ele perguntava ao chefe da estação: "Esperei a vida toda pelo trem que ia me trazer o sentido da minha vida, mas nunca chegou. Será que um dia ainda vai chegar ?". O chefe da estação se abaixou e, vendo que o homem estava para morrer, gritou-lhe na orelha: "Aqui não passará mais trem nenhum, porque esta estação era feita só para você. Todos os trens que pararam aqui e as centenas de passageiros que desceram neste lugar eram destinados só para você.
Foi neles que se realizou o sentido de sua vida. Agora, que você está morrendo, vou fechar a estação". A parábola mostra a figura de um homem que, durante toda a sua vida, aguardava algo que nunca aconteceu. Cada trem que chegava se revelou uma frustração e um fracasso. Mas, em vez de lamentar os sucessivos fracassos, o homem pegou a oportunidade e realizou, no momento em que se encontrava, aquilo que lhe parecia oportuno.
E era nisso que, finalmente, consistia o sentido de sua vida. À medida que compreendemos essa grande verdade, não só nos aproximamos daquilo que chamamos de sabedoria, mas também nos tornaremos felizes, porque compreendemos um pouco daquilo que é o caminho, rumo ao sentido de nossa vida.






4.O MUNDO ASSIM COMO DEUS O QUER


Q
ual a relação que Deus tem com este mundo? Toda prática religiosa e todo culto e, no fundo, até toda doutrina teológica se mede na resposta a essa indagação. Onde, neste mundo, devemos situar Deus? Conforme a resposta que se dá a esta questão, a religião se torna convincente ou ridícula, alienante ou conscientizadora, caminho de fuga ou força transformadora.

Há pessoas que o situam no topo de uma pirâmide hierárquica de poderes e, conseqüentemente, compreendem religião em termos de sistema também hierarquizado, cujo primeiro objetivo é a veneração desse Senhor supremo. Há outras que colocam Deus para fora do mundo, aceitando-o no máximo como espectador passivo de um processo que não mais depende dele. Para essas, religião se aproxima de cultura popular e de manifestações culturais, para embelezar as nossas festas.
Há outras que, pelo contrário, o querem ver como administrador ativo e todo poderoso, que a toda hora interfere e age com poder. Para elas, religião se torna um sistema rígido e ameaçador, através do qual este Deus faz conhecer a sua vontade e controla a nossa obediência às suas leis. E, finalmente, há pessoas que simplesmente hesitam e confessam que não sabem. Estas pessoas, em geral, conhecem as atitudes acima mencionadas e não as compartilham mais.
A sua crença num Deus mágico, que interfere no mundo, se perdeu frente às descobertas científicas, através das quais se explica este mundo cada vez melhor. A sua confiança num Deus todo poderoso, que com bondade dirige o planeta, quebrou diante das desgraças, das dores e das crueldades deste mundo. E a imagem de um Deus legislador e ameaçador, elas a desmascararam como resultado de uma ideologia religiosa interessada no seu próprio poder.

Época pós-cristão
Qual é o papel de sua religião, hoje e nas décadas futuras, onde cada vez mais entraremos numa sociedade marcada por tecnologia, por competição e por lutas pela sobrevivência num mundo? Blanck disse: Voltei de uma viagem à Europa, e ainda fico chocado com a acentuada indiferença religiosa das grandes massas. Fico chocado pela experiência de igrejas vazias e de pessoas, cujo único objetivo é a competição profissional e a ascensão social. Tinha a impressão de que, para a maioria das pessoas, a concepção do mundo se resume na busca de bem-estar e a eliminação de seu concorrente profissional ou comercial.
A questão religiosa cristã não se põe mais, e muitos me falaram claramente do cristianismo como algo superado e ultrapassado. "Entramos numa época pós-cristã", diziam. Se essa atitude se restringisse à Europa, poderíamos, apesar de tudo, ficar sossegados. Poderíamos explicar o fenômeno como algo estranho a nós, algo típico do mundo secularizado e racionalizado. Só que a situação não é tão simples assim. Aquilo que nos países da Europa se mostra de maneira evidente no dia-a-dia, também em nossa realidade latino-americana e brasileira começa a se manifestar.
De maneira menos percebida, porque o número dos fiéis é tão grande que os nossos templos permanecem cheios. Mas também em nosso ambiente urbano, constatamos uma emigração silenciosa da Igreja. Também em nosso país, há cada vez mais pessoas que, no fundo, não acreditam mais na maneira como a religião tradicional lhes foi apresentada. Há muitas outras pessoas que vivem a religião como folclore ou reminiscência do passado, como manifestação de culto de um Deus, compreendido como rei e imperador, e isso num mundo que superou tais modelos hierárquicos.
"
Como resultado, constatamos que também para muitos dos nossos freqüentadores de missas, a verdadeira essência daquilo que é a religião cristã se perdeu. À medida que a consciência das massas se tornar mais crítica, também para muitas delas a religião cristã perderá cada vez mais sua força e sua atratividade. Estaríamos no mesmo caminho que, na Europa, já esvaziou as igrejas. Mas, é exatamente isso que não queremos. Para que não aconteça também ao nosso povo, em vinte anos, aquilo que na Europa já aconteceu, devemos, hoje e agora, começar a agir.

Devemos detectar os problemas e mudar as situações erradas. Onde, porém, estão os problemas? Quais são as causas desse esvaziamento silencioso? Penso que uma das grandes causas é o fato de que, numa história de séculos, a própria religião cristã se afastou muito daquilo que o seu fundador, Jesus Cristo, originalmente quis. Ela se tornou um sistema dogmático e perdeu de vista o seu centro: o ser humano sofrido e esmagado, pelo qual Deus se interessa. Muitos que, em alta voz, se declaram cristãos e cristãs, no fundo, nem sabem mais da intenção primária de Jesus.
À medida, porém, que esquecemos essa intenção, perdemos de vista aquilo que faz da religião cristã uma religião específica, diferente. Ela, então, se torna sistema religioso como tantos outros, com leis e regras, punições e sanções e, conseqüentemente, não há razão para ficar nela. Até fica compreensível que as pessoas busquem respostas que acham mais alegres, mais bonitas, mais felizes. Para evitar uma tal atitude, devemos voltar às nossas origens. Devemos redescobrir aquilo que faz de nossa religião algo especial, da qual vale a pena participar de maneira ativa.
Fazendo isso, não encontraremos celebrações pomposas, um sistema rígido, punições severas contra quem não segue a lei. Em vez de tudo isso, encontramos a convicção de um homem simples e humilde de que Deus não é assim como o sistema religioso estabelecido na sua época o tinha proclamado. Encontramos a certeza absoluta de um carpinteiro, Jesus de Nazaré, no qual reconhecemos o Filho de Deus, que esse Deus não é um Deus que exclui os fracos e pecadores, mas um Deus que tem compaixão deles. Encontramos a mensagem de um Deus solidário com as pessoas que sofrem, que choram, que estão doentes, excluídas, rejeitadas e esmagadas pelos sistemas sociais e religiosos, políticos e econômicos, em vigor.
O Deus de Jesus
No homem de Nazaré, encontramos a absoluta convicção de que Deus corre atrás daqueles que foram excluídos pelo sistema, marginalizados e perdidos aos olhos dos incluídos. Os perdidos e desprezados, Deus não os despreza. Deus os recupera. Deus corre atrás deles, para que possam perder o seu medo, a sua agressividade e o seu ódio, e recuperar a confiança. Jesus, num mundo de controles permanentes, apresentou um Deus diferente. Um Deus que compreende e que não rejeita aquele que caiu, mas o recupera. Jesus acabou com o medo das pessoas frente a Deus.
Em vez de um legislador, ele apresentou um amigo e, em vez de um Senhor, mostrou um irmão, junto ao qual, o nosso coração ansioso e perdido, pode achar amparo. Eis a grande mensagem de Jesus. E, por causa dessa mensagem, os marginalizados de todos os sistemas começaram a recuperar a sua esperança. Por causa da convicção de Jesus, de que Deus é assim como ele nos apresenta no sermão da montanha, eles e elas, que não tinham mais espaço num mundo administrado e determinado pelos poderes políticos, econômicos e religiosos, começaram a levantar a cabeça.
Se Deus é assim como Jesus diz, então, de novo, é possível viver neste mundo de desgraças. Se Deus é assim como Jesus diz, é possível não só viver neste mundo, mas é possível, também, começar a transformar este mundo. E, à medida que agimos assim, aquele Deus de que Jesus fala se torna evidente neste mundo, se torna visível, se torna tocável, porque pode ser experimentado no agir concreto daqueles que nele crêem. Eis o segredo da mensagem de Jesus.
E eis a tragédia de uma religião que, no decorrer de séculos, foi se esquecendo dessa verdade e que em vez de transmiti-la, se retirou num sistema de códigos, leis, de sanções e perseguições, excluindo em nome daquele que, nas palavras de Jesus, foi apresentado como contrário a toda exclusão. É, talvez, a grande oportunidade, para a Igreja e os cristãos da América Latina, de redescobrir e transmitir de novo essa verdade fundamental, em cima da qual começou a nossa religião. Fazendo isso e propagando de novo a verdade de Jesus sobre Deus, esta América Latina tem a grande chance de tornar-se a nova força missionária, num mundo que está cheio de anseios e de necessidades, para redescobrir o Deus de Jesus.




5.INFERNO E UM DEUS QUE AMA






Durante séculos, os cristãos ficaram aterrorizados com um elemento que interiorizaram como a terrível ameaça de que o seu destino, após a morte, não seria garantido em termos positivos. Pairava sobre a sua existência uma possibilidade, terrível e atormentadora: o inferno.

A probabilidade de sua concretização era apresentada em termos cada vez mais drásticos pela catequese religiosa, como descreve J. Chorón: "O além, graças aos esforços da Igreja, tornou-se fonte de terror em vez de consolação". Uma teologia da punição e da ameaça contribuía para que os cristãos, no sentido mais profundo da palavra, perdessem o sorriso. O grande filósofo ateu Friedrich Nietzsche, frente a esse quadro, fez uma acusação amarga: "Os cristãos deveriam se apresentar mais redimidos, para que se pudesse acreditar no seu redentor".
Hoje, os estudos da psicologia analítica mostram o quanto as imagens de um inferno estão ligadas a mecanismos patológicos de punição e de vingança, enraizados no inconsciente coletivo e em matrizes deturpadas da imagem de Deus. As pesquisas históricas e exegéticas trouxeram à tona as origens da imaginação infernal: a cosmovisão do antigo Oriente e suas mitologias sombrias.
A obra do conhecido teólogo e psicanalista Eugen Drewermann revela como nas imagens do inferno, analisadas com o instrumentário da psicanálise, manifestam-se formas arcaicas da projeção de angústias humanas.

Depois de uma análise aprofundada das origens do imaginário infernal, o famoso teólogo Herbert Vorgrimler, em História do Inferno, chega à seguinte conclusão: "As expectativas de um inferno se formaram a partir das noções do inconcebível, do ameaçador, do futuro incerto, de experiências próprias de violência e de depressões. Agressões não trabalhadas ou não vencidas, supremacia do super-ego, fantasias sobre vingança e desejos de onipotência, tudo isso se deixa legitimar, recorrendo a interpretações fundamentalistas de textos bíblicos. Reações psicóticas de pânico e desejos de aniquilação se apresentam como causas macrocósmicas".
Frente a esse complexo quadro, coloca-se, hoje, para a teologia a necessidade de repensar as concepções tradicionais. Não dá para negar que Jesus, na sua proclamação de uma nova realidade de Deus, recorreu a certos elementos de um imaginário infernal que, já na sua época, se tinha estabelecido no pensamento religioso. Mas, também, não dá para negar que sua proclamação acentua muito mais a vontade que esse Deus tem de salvar.
"Deus quer que todos os homens sejam salvos", proclama Paulo em 1 Tm 2,3-4 e em tantos outros textos.
Um Deus que, em Jesus Cristo, formula declarações como a seguinte, não é compatível com as imagens do inferno: "Se alguém ouvir as minhas palavras e não as observar, não o julgarei, porque não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo" (Jo 12, 47). Deus não condena ninguém, vemos em Jo 8, 15. (cf. também Jo 5,22).
O projeto que Deus tem para a humanidade é um projeto de vida e não de morte. Confiante nessa grande verdade, a teologia moderna formula, com convicção, a esperança de que todas aquelas imagens de infernos e de punições eternas sejam imagens, advertências de uma possibilidade que não se tornará nunca realidade.
"As afirmações escatológicas de Jesus", diz o grande teólogo Karl Rahner já nos anos 60 do século passado, "não proíbem ter esperança para todos" (cf.: Vorgrimler, Geschichte der Hölle e Rm 11,32).
Baseada nessa esperança, a teologia formula uma mensagem mais consoladora. Na morte, Deus propõe a cada ser humano que entre numa nova maneira de existir; baseada no amor. A aceitação dessa proposta exigirá conversão total de tudo aquilo que dentro da pessoa ainda é oposto ao amor de Deus. Teoricamente, é possível que alguém, até na morte, se negue a mudar. Com a rejeição de tudo aquilo que Deus oferece, tal pessoa criaria para si uma situação de afastamento total de Deus, de isolamento dentro da finitude humana, de morte consciente; em uma palavra, exatamente aquilo que chamamos inferno.
Mas, será que diante da oferta de Deus, alguém agiria assim? Possível é, porque a rejeição faz parte da liberdade humana. Não podemos saber, mas temos todo direito de esperar que não. Essa afirmação baseia-se na esperança de que, diante da perspectiva oferecida, "toda resistência do meu coração obstinado deve dissipar-se". A conversão torna-se alegria e a mudança das características negativas de minha personalidade vira necessidade ardentemente desejada por mim mesmo. Quem seria eu, se não respondesse ao chamado de um tal amor?
Na sua luz, nada serão todos os pseudo-valores de uma personalidade agarrada no egoísmo e na arrogância. Que importância ainda terá todo status e todo orgulho, acumulados no decorrer da vida? Deus me convida, e os valores dele revelam o desvalor de todos os meus traços egocêntricos de orgulho. Tudo aquilo que pensei ser importante a partir de uma óptica da arrogância egoísta, se revelará como sendo brincadeira infantil de uma criança insensata. Será que uma única pessoa humana se fechará dentro de si, quando confrontada com a riqueza de um ser infinito e de uma existência plena que se abre diante dela?
"Quem nós poderá separar do amor de Cristo" (Rom 8, 35), exclama Paulo na sua exaltação do projeto final de Deus. "Estou convencido", diz ele, "de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes nem as forças das alturas ou das profundidades, nem qualquer outra criatura, nada nos poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Crsisto, nosso Senhor" (Rom 8, 38-39).
Quem somos nós, humildes seguidores dos passos de Paulo, para dizer outra coisa. Quem poderá separar-nos do amor de Deus? Ninguém! Eis a nossa esperança, que também é aquela de Paulo (cit. Cf. Renold J. Blank, Consolo para quem está de luto, p. 36-38). Eis a grande esperança da religião cristã! Baseados nessa esperança, somos capazes não só de superar as nossas angústias, frente a uma possível situação de inferno: seremos capazes, também, de começar a superar toda e qualquer situação de inferno, aqui na terra.






6. A CIÊNCIA que descobriu a morte
A morte não é algo desconhecido, porque todo ser humano passa por tal experiência. Mas, é relativamente tarde que a ciência começou a se interessar pelo fenômeno. Há pouco mais de vinte anos que o mundo inteiro ficava surpreso com os resultados de uma pesquisa sobre pacientes terminais ou clinicamente mortos que, depois de sua revitalização, revelaram experiências até agora desconhecidas.
Quem, hoje, pesquisar na Internet essas experiências, chamadas de "ssnear-death-experiences", encontra milhões de sites, que se preocupam com o assunto. As assim chamadas "experiências perto da morte", tornaram-se objeto de pesquisas de todo tipo e de interpretações de toda espécie. Ficou de conhecimento geral que, perto da morte, as pessoas podem passar por experiências intrigantes; sentir-se fora de seu corpo, passar por um túnel escuro, enxergar uma luz clara e brilhante, e fazer a experiência de paz e de harmonia no momento de encontrar-se com essa luz.
As interpretações desses fenômenos, cuja existência não mais podemos negar, são das mais variadas. Uns querem ver nelas as primeiras experiências do além. Outros interpretam tudo a partir de mecanismos psicofisiológicos, como últimas descargas bio-elétricas do cérebro. A resposta definitiva até hoje não temos, mas há cada vez mais indícios que apontam na direção de uma explicação psicofisiológica.
A descoberta de tais fenômenos levou a ciência a preocupar-se mais com aquela experiência que, até hoje, ainda permanece um dos campos pouco explorados pela ciência: a morte. O interesse científico pelo fenômeno cresceu de tal maneira que ressurgiu com novo vigor aquele ramo da ciência que se preocupa com a morte, a assim chamada tanatalogia, cujo campo de interesse vai da medicina e da biologia, até as áreas da antropologia social, da psicologia, da antropologia e da sociologia, e finalmente termina com a filosofia e a teologia.
A preocupação científica com a morte mostrou quão pouco ainda sabemos sobre essa última experiência empírica de todos nós. O que acontece conosco na morte?
A famosa pesquisadora Elisabeth Kübler Ross descobriu que, no processo de nosso morrer, se podem distinguir cinco fases bem nítidas. A primeira delas está sendo chamada de "choque ou incredibilidade". Frente à informação de que a sua morte é inevitável, a pessoa, primeiro, não acredita naquilo que os médicos dizem. Quando, porém, não é mais possível negar o óbvio, entra numa segunda fase, aquela da raiva, da ira, e da inveja. "Por que eu? Existem mil razões para eu não morrer!" Pessoas que acreditam em Deus começam a culpá-lo. "Que Deus é este, que me deixa morrer, sabendo que a minha família ainda precisa de mim!"



Há de fato mil razões para não morrer, e na segunda fase, essas razões estão sendo lembradas. Mas, diante da impossibilidade de impedir o processo do morrer, a pessoa se torna agressiva. Agressiva contra si mesma, agressiva contra Deus, agressiva contra as pessoas em torno dela. O pessoal hospitalar que trabalha com moribundos conhece muito bem as explosões de raiva que nessa fase podem acontecer. As pesquisas da tanatologia ajudam-nos a compreender tal comportamento e a tolerá-lo, porque sabemos que, na base de toda essa agressividade, há o profundo desespero daquele que se vê confrontado com o inevitável que lhe inspira medo e do qual quer fugir.
É aqui que se abre todo um campo de ação para uma psicologia hospitalar ainda em formação. Abre-se todo um campo, também, para uma pastoral praticamente inexistente ainda: A pastoral do moribundo. Ela ficaria do lado da pessoa em todos os momentos de seu processo de morrer, ajudando-a a passar com mais facilidade pelas suas fases.
A terceira delas começa a partir do momento em que a pessoa se torna capaz de superar a sua raiva. Com isso, entra na fase da "negociação". Ela tenta negociar um prazo maior. "Vou morrer, sim, mas não já, mas o ano que vêm". Em geral, porém, toda negociação não adianta e, assim, a pessoa entra na quarta etapa de seu processo de morrer: a depressão. O moribundo, agora, deve despedir-se do mundo e, nessa ocasião, percebe que ama sua vida muito mais que pensou. Despedir-se dela torna-o triste. Mas, realizar a despedida é a condição para poder aceitar a morte. Uma vez realizada tal aceitação, a pessoa se tranqüiliza. Ela, agora, pode falar de seu morrer com serenidade e, muitas vezes, nessa fase, é o moribundo que consola a sua família e não mais a família que consola o moribundo.
São estas as cinco fases do morrer, descobertas e pesquisadas pela tanatologia. Mas, além de preocupar-se com esse lado psicossocial do morrer, a mesma tanatologia se interessa também por uma outra questão: quando é que podemos declarar uma pessoa realmente morta?
Nós nos acostumamos a falar de "morte cerebral" ou "morte clínica", mas, em geral, tais termos são compreendidos de maneira muito restrita, assim como se eles designassem a morte da pessoa inteira ou como se fosse um "momento" bem determinado.

Na realidade, porém, era a Comissão Ética da Universidade de Harvard que propunha o termo, em 1968, como definição da morte. Tal redefinição se fez necessária, frente à nova técnica de transplante de corações.
A noção não determina um "momento específico", mas deve ser compreendida muito mais em termos de uma "síndrome" que inclui toda uma escala de sintomas, cuja soma conduz à declaração da morte. Na verdade, essa declaração determina nada além do que a morte de um órgão humano, o cérebro. E as evidências apontam que nem do cérebro inteiro se trata, mas só de uma parte.
Quando essa parte morreu, a medicina declara o paciente morto, e esta declaração, além de seu conteúdo médico, tem também um significado jurídico muito importante. A partir daquela declaração, a pessoa é juridicamente morta. Agora, os seus órgãos podem eventualmente ser usados para transplantes. Do ponto de vista biológico, porém, com a declaração da morte cerebral, esses órgãos ainda estão bem vivos. Eles morrerão, progressivamente, num processo que, só mais ou menos três semanas mais tarde, chegará ao seu fim. É este momento que a tanatologia chama de "morte real".
A consciência porém, assim como nós a podemos detectar, apaga-se muito antes dessa morte real. Ela se apaga, quando o cérebro, o instrumento através do qual a consciência se manifesta, pára de funcionar. É este o momento que a medicina chama de "morte cerebral".
A grande questão que se põe, frente a todo esse quadro científico, é a indagação se, com a consumação da morte cerebral, a pessoa como tal também parou de existir. A resposta a esta questão vai claramente além do quadro de qualquer ciência empírica. O nosso próximo artigo vai questionar se ainda pode haver vida consciente, depois da morte declarada pela medicina.



·         Será que haverá algo depois da morte?

·      Ou será que, talvez, têm razão aqueles que, em alta voz, proclamam que não existe nada?
·       Os cristãos dizem que, depois da morte, a vida continua, e seus irmãos espíritas proclamam o mesmo, só que, na maneira como imaginam essa vida depois da morte, têm idéias profundamente diferentes.

De onde, cristãos e espíritas tiram a certeza de que a sua vida realmente prosseguirá depois desta vida? "Temos que ter fé", dizem os cristãos. "Os espíritos nos informaram", dizem os espíritas, proclamando que o fato da aparição de espíritos é uma prova clara de que a vida depois da morte continua.

Só que tais pretensas aparições estão sendo questionadas, hoje, de muitos lados. Psicologia e parapsicologia mostram que a absoluta maioria das assim chamadas aparições de espíritos pode ser explicada, recorrendo a capacidades inconscientes do ser humano. Conteúdos e imagens da pessoa humana estão sendo projetados para fora e materializados, de tal maneira que todas aquelas materializações, aparições e fenômenos, aparentemente produzidos por espíritos, revelam-se, na realidade e diante do olho crítico da ciência, como produtos dos vivos. São eles - e não os espíritos de mortos - que produzem tais fenômenos. De possíveis fraudes e truques nem vamos falar.
E assim estamos de novo diante de nossas dúvidas. A aparente prova de uma sobrevivência após a morte, apresentada pelo espiritismo, revela-se como hipótese cada vez menos corroborada pelos fatos científicos.
Será que com isso devemos simplesmente permanecer no nível de "ter fé", como muitos cristãos dizem? Ter fé é uma atitude profunda e maravilhosa, mas ter fé não conta no mundo da ciência. A ciência quer fatos mensuráveis, observáveis e comprováveis.
Será que existem tais fatos no que diz respeito à questão da existência de uma vida depois da morte? As pressupostas provas do espiritismo desfazem-se e a maioria dos cristãos, de antemão, recorrem ao nível do acreditar, porque a fé não precisa de provas. Mas, são exatamente esses cristãos que, na realidade, dispõem de uma base empírica indiscutível para a sua fé. Eles têm na mão uma prova que resiste a qualquer questionamento científico. Esta prova, que chamo "prova sociológica", consiste no fato de hoje falarmos ainda de Jesus Cristo.
Não só se fala dele, mas um bilhão e meio de pessoas depositam nele toda a sua confiança e toda a sua esperança. Elas fazem isso porque dizem que este Jesus, depois de morto, teria voltado à vida. Sua ressurreição confirmaria, assim, que há vida depois da morte, respondendo exatamente à nossa indagação inicial. É este o núcleo de fé, no qual acreditam todos aqueles que se chamam cristãos.
Mas, a partir de um enfoque científico-crítico, devemos também aqui voltar a questionar: será que Jesus voltou mesmo? Será que todas as narrações sobre a sua ressurreição não são invenção de seus seguidores, que quiseram continuar com suas idéias?
Essa objeção ficaria impossível de ser refutada, caso este Jesus tivesse morrido de uma morte qualquer, caso, por exemplo, tivesse sido decapitado ou liquidado de alguma outra maneira. Mas, a história dele não terminou assim: Jesus foi crucificado e este fato tem um significado muito especial. Isso, porque, conforme a concepção da época de Jesus, a cruz em nada significava um sinal de honra ou de glória, assim como é hoje no mundo cristão. Ser crucificado, na época de Jesus, era a maior vergonha imaginável. Ser crucificado significava o mais claro sinal de um fracasso total.
Ser crucificado, implicava ser rejeitado e negado pelo próprio Deus, conforme o texto chocante de Dt 21,23, onde podemos ler o seguinte: "Maldito por Deus, quem pende na cruz".
Esse Jesus pendia na cruz e, conseqüentemente, era maldito pelo próprio Deus. De um maldito por Deus, porém, nunca mais se pode falar. Era esta a concepção social e religiosa da época. E como conseqüência dessa concepção, um crucificado deixava de ter existido. Um crucificado não existia mais na memória da sociedade e nunca tinha existido. De um crucificado, simplesmente, não se podia mais falar e muito menos daquilo que tinha dito e feito.
Assim era a atitude da época também frente ao Jesus crucificado. A sua morte era uma vergonha e o maior sinal imaginável de fracasso. Esta também era a opinião de seus seguidores e, por causa disso, todos foram embora. Mesmo através dos muitos filtros, pelos quais a tradição passava até ser escrita nos Evangelhos, ainda transparece a decepção insondável de seus seguidores. "Todos ficavam a distância" (Lc 23,49), porque todos, naquela hora, estavam convencidos de que tinham se enganado.
E fora do grupo dos seus discípulos, todos estavam certos de que esse Jesus teria sido um usurpador, um mentiroso talvez, mas, com certeza, não o Messias, porque um Messias não pode ser maldito por Deus. Assim, foram embora e sobre esse Crucificado caiu o veredicto que pairava sobre todo crucificado: dele não se falava mais.
Se a história de Jesus tivesse terminado com a cruz, também hoje, ninguém falaria dele, porque, naquela época, depois da cruz, era simplesmente impossível pronunciar o nome do crucificado. Só que hoje, nós falamos de Jesus. Não só falamos, mas ele se tornou a pessoa com a maior influência histórica de todos os tempos.

Ter fé é uma atitude profunda e maravilhosa, mas ter fé não conta no mundo da ciência. A ciência quer fatos mensuráveis, observáveis e comprováveis.
Como tal fato é possível, frente ao veredicto apresentado acima?
A única explicação possível para tal fenômeno é que, depois de sua morte na cruz, depois de seu óbvio fracasso aos olhos de todos, aconteceu algo tão grandioso, tão chocante, tão absolutamente novo, que até foi possível voltar a falar dele, "apesar" da cruz; apesar do veredicto bíblico e apesar da proscrição social e religiosa. Deve ter acontecido algo que era maior que tudo isso. Maior que toda a tradição de séculos, maior que todos os veredictos da época.
O que foi este acontecimento totalmente único?
Todas as testemunhas que, na época, voltaram a falar dele, apesar da cruz, são unânimes em confirmar que tal evento inimaginável realmente aconteceu. E todas as testemunhas declaram o fato de que esse Jesus, depois de sua morte, voltou vivo. Ele ressuscitou.
A ressurreição tornou-se a grande prova de que Jesus, contra todas as aparências da cruz, não tinha fracassado, de que ele era o Messias, de que Deus estava com ele e não com o Templo que o tinha crucificado. Se essa ressurreição não tivesse acontecido, nada disso poderia ter sido provado.
Assim, porém, voltou-se a falar dele, a sua mensagem continuou, apesar da cruz, porque ele ressuscitou da morte. Deus o ressuscitou, e de um ressuscitado era possível voltar a falar.




Esta ressurreição, além de todo o seu significado teológico, traz assim uma prova, empiricamente mensurável, de que, depois da morte, a vida continua. Porque esse Jesus estava morto mesmo, mas voltou da morte e viveu. Se, porém, podia voltar da morte, então a morte não significa a aniquilação da pessoa.
A vida vai além daquilo que chamamos morte. A prova disso é o fato de que Jesus voltou da morte, e a prova empírica que ele realmente voltou é o fato de hoje falarmos dele. Se ele não tivesse ressuscitado, nunca, naquela época, teria sido possível voltar a falar dele. É esta a prova sociológica da ressurreição de Jesus, que, por sua vez, se torna a prova de que, depois da morte, a vida continua ...





8.Reencarnamos ou ressuscitamos?




E
 convicção comum na maioria das religiões que, depois da morte, algo da pessoa humana, um espírito, uma alma ou algum outro princípio, continuará vivendo. Em muitas culturas defende-se, além disso, a idéia de que esse âmago invisível precisaria ainda passar por algum processo de purificação ou de aperfeiçoamento.
Nos escritos sagrados do hinduísmo, encontramos desde o século 6 a.C. a teoria de que tal aperfeiçoamento aconteceria através de, assim chamadas, reencarnações. As pessoas, depois da morte, teriam que voltar, em outro corpo e numa outra época, para viver outras vidas terrenas. Assim, pagariam pelas faltas cometidas em vidas anteriores ou receberiam a devida recompensa por suas boas obras.
A existência apresenta-se, a partir dessa visão, como roda sem fim de novas vivências, regidas por uma lei cósmica chamada "karma". O budismo adota a mesma crença. No contexto da cultura greco-romana, ela foi desenvolvida, desde Pitágoras e Platão, sob o nome de "metempsicose", de migração da alma de um corpo para o outro. Na época do Império Romano, as elites não-cristãs aderiram em grande parte à mesma crença, sobretudo a partir do movimento intelectual do neoplatonismo, do séc. 3 d.C. E até no judaísmo tardio do século 9 e 10, encontramos grupos que acreditavam na reencarnação.
Em meados do séc. 19, Alain Kardec formula, na França, uma síntese de várias dessas crenças, interligando-as com outras idéias sobre possibilidades de entrar em contato com espíritos de mortos. A sua concepção espalhou-se em pouco tempo sob o nome de espiritismo kardecista.
Esse espiritismo, com o seu misticismo científico, tornou-se a grande base para todos aqueles que quiseram manter a idéia de uma sobrevivência depois da morte, sem por isso adotar a explicação, aparentemente mais mística do que científica, das religiões cristãs. A reencarnação parecia responder, ao mesmo tempo, aos anseios de seus corações e às exigências rigorosas da lógica intelectual.
As explicações de seus defensores pareciam lógicas e as supostas provas, apresentadas numa linguagem que soava muito científica, convenceram e ainda convencem até muitos cristãos. Isso, sobretudo, quando esses cristãos, nem de longe, sabem daquilo que, em nosso último artigo, foi chamado de "prova sociológica da ressurreição".
Assim se espalhou a crença na reencarnação e até muitos cristãos esqueceram-se da alternativa chocante e inovadora, com a qual a sua própria religião responde à indagação sobre o destino do homem depois da morte: a ressurreição. Essa idéia revolucionária de que o homem, depois da morte, entraria numa forma de existência totalmente outra, nova, em dimensões que nem o intelecto mais imaginativo poderia imaginar, parecia ter perdido muito de seu poder de atração. Por causa disso, vale a pena lembrar de novo a sua gênese e a sua tese absolutamente deslumbrante.
Em oposição total a todos os argumentos lógicos e bem formulados dos adeptos da reencarnação, a idéia de que o último destino do ser humano iria além de uma repetição limitada ou ilimitada de sempre novas vivências, formou-se como crença ardente e viva de um povo insignificante aos olhos de todos os poderosos: Israel.
Nascida a partir de vivências históricas, dentro das quais o povo tinha experimentado a presença de um Deus totalmente diferente de todos os outros deuses da época, surgiu uma nova convicção: este Deus, que era tão diferente de todos os outros, também diante da morte de uma pessoa humana agiria de maneira diferente. "Nosso Deus é um deus da vida"! esta era a convicção central e, sendo ele assim, não deixará o ser humano desaparecer na morte.
Essa fé mantinha-se e expandiu-se durante séculos como a grande alternativa, contra todas as expectativas de todas as outras religiões e filosofias. "Deus é mais forte que toda morte", e como se mantém fiel à pessoa humana, ele a ressuscitará, de tal maneira que nunca mais ela tenha que experimentar a morte.
Não obstante todas as experiências traumáticas e catastróficas pelas quais Israel passou, essa sua concepção de esperança além da morte, já no século 4 a.C., alcança uma forma bem explícita, formulada, entre outros, no grande texto de Isaías, cap. 26, 19: "Teus mortos reviverão, os cadáveres ressurgirão! Despertai e alegrai-vos, vós que habitais o pó".
Não se fala de uma alma, nem de um espírito, que ressurgirá ou que por si seria imortal ou eterno. Exprime-se a convicção de que a pessoa inteira, na sua morte, será resgatada pelo agir de Deus. É ele que age, ressuscitando o ser humano que morreu, para que nunca mais morra. Nesses termos, ficava a convicção de uma fé cheia de esperança e que permaneceu, no nível de fé, por mais de 400 anos, até que foi confirmado historicamente pelo chocante evento que conhecemos pelo nome de "ressurreição de Jesus".
Sobre a historicidade de tal evento e seu significado, falamos em nosso último artigo. A partir dessa ressurreição, aquilo que antes tinha sido fé, alcançou uma base empírica, científica e histórica. Um morto tinha voltado à vida, porque "Deus o tinha ressuscitado". Assim formulam as testemunhas daquela época e, por seu testemunho, quase todos tinham que morrer nas perseguições. Mas nem por isso mudaram.
Deus ressuscitou Jesus e, ressuscitando este morto, confirmou a fé dos séculos passados. Ele, de fato, é um Deus capaz de ressuscitar mortos. Ele não só é capaz, mas ele o faz. Paulo, o brilhante primeiro intelectual entre os seguidores de Jesus, formula de maneira bem clara: "Deus, que ressuscitou Jesus, ressuscitará também a nós pelo seu poder".
Esse primeiro ressuscitado, Jesus, ao qual Paulo se refere, em nada era compreendido como sendo um reencarnado. Um reencarnado, conforme toda a teoria da reencarnação, se tivesse aparecido em outra época, em outra forma, dentro de um contexto histórico diferente.
Jesus, porém, não era diferente. Era ele mesmo e se lembrava completamente de tudo aquilo que tinha dito e feito antes de sua morte - o que um reencarnado nunca consegue. Jesus foi ressuscitado e não reencarnou, disso todas as testemunhas não tinham a mínima dúvida.
A partir dessa experiência, todo pensamento sobre reencarnação parecia simplesmente ridículo, superado e sem interesse nenhum. Por que pensar em repetir quantas vivências no contexto problemático deste mundo, se Deus demonstrou, em Jesus, de maneira tocável e visível, uma outra alternativa? Alternativa melhor e digna de um Deus, do qual se diz que ele quer a vida e que é a vida.
Deus ressuscita o homem e, uma vez ressuscitado por Deus, esse homem nunca mais morre. Deus não ressuscita só uma parte espiritual do homem, uma alma espiritual, mas a pessoa humana inteira, global e completa. E ele o faz, porque ama esses seres humanos.
Ele os ama de tal maneira que não quer esperar uma infinidade de sempre novas reencarnações, através das quais eles se purificariam progressivamente. Uma única vida basta e, depois dela, Deus ressuscita o homem, para que seja amparado no amor e na plenitude de vida dele. E, hesitando e balbuciando, tenho a coragem de dizer: para que Deus seja amparado no amor desse ser humano, que tanto ama e por cujo amor tudo faz.
É essa a grande convicção de esperança que, a partir de Jesus, começou a conquistar o mundo e que hoje, de novo, devemos recuperar.



9. Um purgatório que não é fornalha




A
 doutrina da reencarnação insiste, com todo direito, que a pessoa humana, no fim de sua existência, não é um ser plenamente evoluído. Toda vida humana apresenta, no momento da morte, ainda muitas falhas, projetos não realizados, elementos fragmentários, lacunas e fracassos. A personalidade humana, no decorrer de sua vida, desenvolveu características negativas, não desenvolveu as positivas, ficou estática e talvez fechada em si mesma; em uma palavra, não corresponde aos parâmetros de um ser ideal.
Esse fato existencial, de outro lado, esbarra com as pretensões formuladas por todas as grandes religiões. A pergunta inquietante que surge assim é esta: como a pessoa que chegou ao termo de sua existência e que não conseguiu evoluir todas as suas potencialidades positivas, poderá tornar-se pessoa plena? Ela morreu. A sua vida acabou. Ela, agora, é aquela personalidade fragmentada e incompleta, que fez de si durante a sua vida vivida. E agora?
Os adeptos da reencarnação resolvem o dilema, postulando novas vivências, repetições de novas vidas humanas, em outros corpos, outras épocas e contextos sociais. Nessas sucessivas vivências, dizem, a pessoa poderá evoluir mais. Vida após vida, ela conseguirá limpar o seu carma. Assim, ela se tornará uma pessoa cada vez melhor, até finalmente, depois de um número infinito de reencarnações, aproximar-se de um nível de evolução plena.
Frente ao mesmo problema, a religião cristã dá uma resposta totalmente diferente. Ela parte do mesmo pressuposto: o ser humano, na morte, não chegou à realização plena de todas as suas potencialidades, apesar de que isso tem sido a sua tarefa. Para que tal meta se cumpra, apesar da fragmentariedade da vida vivida, a religião cristã não imagina uma série de novas vivências em contextos históricos diferentes. A sua concepção é mais original, porque presume um Deus mais imaginativo; um Deus criativo, que não se contenta com a repetição de estruturas basicamente iguais de vidas humanas.
A concepção cristã prevê para a pessoa humana, na morte, um passo para frente, um pulo para dentro de novas dimensões nunca antes vividas. Dimensões abertas para experiências totalmente novas, abertas para Deus. Nessas dimensões, a pessoa humana entrará na sua morte, não porque isso corresponde à sua natureza, mas porque Deus assim o deseja. Esse Deus, com o qual o homem se encontra na sua morte e que se define como Deus que "... quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se" (2 Pe 3,9), deseja que "todos os homens sejam salvos" (1 Tm 2, 3-4).
Pondo toda a sua confiança nessa vontade salvífica de Deus, a religião cristã formula uma resposta cheia de esperança: no seu centro, há a convicção de que Deus acolhe o ser humano na sua morte de maneira pessoal. Ele o acolhe, com todas as suas fraquezas, com todas as suas falhas e com as mil deficiências de uma personalidade mal evoluída.
A essa pessoa, Deus mostra a vida que ela viveu e quanto esta vale, quando comparada com os parâmetros dele.
Assim, cada pessoa, na sua morte, se vê, pela primeira vez, em todo o seu aspecto fragmentário e inacabado. Mas, com isso, a experiência não pára. Deus oferece a cada ser humano, na sua morte, a possibilidade de tornar-se pessoa plena. Ele oferece a oportunidade de passar por um processo de evolução, junto com ele e na presença dele.
O homem, diz a religião cristã, na morte, não está entregue à sua própria nulidade, mas se encontra com um Deus que ama. E este Deus formula para cada pessoa mais um último convite de conversão e evolução. Ele estende a mão, porque ama, oferecendo, em sua graça, tudo aquilo que falta a esta pessoa, para que ela se torne pessoa plena. O homem só deve aceitar aquilo que Deus oferece.
Tal aceitação implica um primeiro passo, uma conversão. A pessoa, que durante toda a sua vida construiu de si uma estrutura pessoal, deverá adaptar essa estrutura aos parâmetros de Deus. Tal conversão pode ser difícil, porque significa talvez a mudança de características da personalidade, fixadas e definidas durante toda uma vida.
O último processo de conversão e de evolução, através do qual tais novas dimensões da existência vão se abrir, foi tradicionalmente denominado "purgatório". Nome infeliz para muitos, porque evoca todo um imaginário medieval de purificação dolorosa, através do fogo. Por causa disso, há muitas pessoas que, de antemão, rejeitam a idéia de um tal processo. É pena, porque assim rejeitam uma das concepções mais ricas, mais profundas e mais consoladoras da religião cristã.
A idéia original de purgatório não tem nada a ver com aquela fornalha, assim como foi apresentada no passado e que hoje está sendo rejeitada com todo direito. A idéia original, atrás da imagem, é uma das grandes verdades de consolo e de esperança da religião cristã. Na sua base, há a convicção dupla de que Deus quer a vida plena de todos os seus filhos e de todas as suas filhas, mas que, ao mesmo tempo, respeita a liberdade do ser humano. Deus oferece a vida, mas a pessoa deve aceitar aquilo que Deus oferece. Nesse aceitar, porém, pode estar aquela dificuldade que, no passado, se tentou descrever com a imagem conhecida da "fornalha".
Uma pessoa que já na vida se acostumou a viver em sintonia com os parâmetros de Deus não terá muita dificuldade em aceitar sua oferta também na morte. Para uma pessoa, porém, que construiu uma personalidade oposta aos critérios de Deus ou afastada deles, a sua conversão significa processo doloroso. Mas, ela é possível e, aceita, implica evolução.
Visto a partir de uma tal perspectiva, que está em total sintonia com a doutrina de nossa Igreja, o processo de purgatório apresenta-se como a grande resposta de esperança, formulada pela religião cristã. Perspectiva nova e fascinante, cuja originalidade supera em muito a resposta apresentada pelas velhas doutrinas de reencarnação. O que se abre como perspectiva na morte não é a repetição de parâmetros já conhecidos, dentro do quadro de novas vivências humanas. O que se oferece é um passo para frente, para dentro das dimensões infinitas de Deus. Eis a Boa Nova que se esconde por trás da antiga noção de purgatório.



10.O mundo assim como Deus o quer





T
rabalho missionário significa trabalhar na realização de um mundo que corresponde aos planos de Deus. Com esta definição, poderíamos terminar as nossas reflexões, antes mesmo de as começar. Sabemos, por uma catequese de séculos, que Deus quer um coração puro e que tal coração se alcança pela observância de seus mandamentos e, caso necessário, ainda daqueles da Igreja. Fazendo isso, estamos no caminho certo, e o mundo, automaticamente vai ser diferente, porque os homens serão diferentes.

São gerações de cristãos e cristãs que, de uma ou outra maneira, pensavam ou argumentavam assim e, em muitos casos, o fazem ainda hoje. Sua argumentação soa muito bem e até é capaz de tranqüilizar a nossa consciência. Mas, apesar disso, apresenta um pequeno problema e até uma ligeira dificuldade. O problema consiste no fato de que, olhando pela janela, constatamos, depois de dois mil anos de religião cristã, um mundo que em nada corresponde às nossas expectativas. A opressão dos fracos, por sistemas econômicos exploradores, nunca foi tão gritante como hoje.
A destruição do meio ambiente, por causa de interesses gananciosos, nunca alcançou dimensões tão alarmantes. O desprezo pela dignidade do indivíduo por causa de racismo, de fome, de migração forçada e de guerras, chegou a um nível nunca antes observado. Dos níveis de violência, nem vamos falar. Tudo isso, depois de dois mil anos de mensagem cristã. Será que a nossa receita para a construção de um mundo como Deus o quer está errada?
Será que os mecanismos de nosso agir missionário não deram certo? Ou será que o próprio Deus, talvez, se enganou na formulação de seus preceitos? Indagações sérias, com as quais cada um se deve preocupar a partir do momento em que abre os olhos, para ver este mundo de maneira nua e crua.

O mundo, como ele é, não se apresenta como painel de propaganda para os cristãos e a sua religião. O mundo, nas suas estruturas, em muito não corresponde às concepções que esta religião apresenta como suas; e, por causa disso, há cada vez mais pessoas que começam a questionar tal religião.
Outras a criticam e outras, ainda, simplesmente vão embora, decepcionadas, em busca de outras respostas. Nem ser evangelizadas ou re-evangelizadas elas querem e, quando ouvem falar de trabalho missionário, sua resposta é a indiferença. E, apesar de tudo isso, somos chamados a realizar um tal trabalho.
Mas, ao realizá-lo, devemos primeiro começar a refletir sobre as razões pelas quais este trabalho, apesar do esforço de séculos, aparentemente deu tão poucos frutos. A resposta a essa indagação é complexa e, nem de longe, me atreveria a apresentar aqui uma fórmula mágica para resolver o problema.
A única coisa que se pode tentar é mostrar algumas pistas e apresentar alguns impulsos para reflexões futuras. Uma das pistas, que devemos trabalhar, me parece ser a volta às nossas origens. Ali, encontramos a figura de um homem simples e humilde, na qual reconhecemos e confessamos encontrar Deus, o Deus encarnado, o Deus que se fez homem, o Deus que se envolveu no caos deste mundo de maneira pessoal e direta:
Jesus, o Cristo. E este Jesus nos apresenta um programa que, até hoje, tão pouco realizamos, que muitos já esqueceram. Para outros se tornou fórmula espiritualizada que não tem nada a ver com o mundo real. E para outros, ainda, é pura utopia. O nome do programa é Reino de Deus e a grande mensagem de Jesus era que tal Reino já teria começado.
Aí estamos com a nossa argumentação e o nosso olhar pela janela. O Reino de Deus já começou, diz Jesus. Mas o olhar pela janela nos deixa duvidar da veracidade desta palavra. Ou será, talvez, que aquilo que enxergamos é o Reino? Nisso não podemos acreditar e, sendo assim, a única solução parece admitir que a realização do Reino que Jesus tinha declarado, esteja atrasada. O Reino, dizemos, começou, mas também não começou ainda e, com isso, podemos explicar a aparente contradição e acalmar as nossas consciências.
O Reino de Deus virá no futuro. E, quanto mais diferente dos valores do Reino o presente se delineia, mais projetamos, para o futuro, aquele começo prometido. Mas, é exatamente nisso que estamos errados. É exatamente aqui que devemos começar a mudar. É nessa questão que devemos agir de maneira diferente. Em vez de satisfazer-nos com a explicação sobre a futura realização plena daquilo que Jesus anunciou, devemos tomar as suas palavras a sério e fazer delas o princípio de nosso agir.
Devemos acreditar naquilo que Jesus realmente acreditou: que o Reino de Deus já começou. Ele acreditou nisso e, com isso, acreditou que a humanização plena do mundo e de todas as relações humanas pudesse ser vivida agora, desde já e sem nenhum atraso. Ele acreditou que é possível que os pobres, agora, podem ser consolados através de uma mudança de sua situação. Ele acreditou que a bondade, a ternura e a humanidade de Deus podem ser experimentadas já, no momento atual da história.
Ele acreditou que aqueles que choram, podem ser levantados agora, e que aqueles que foram esmagados e pisados e rejeitados, podem ser recuperados neste momento. Ele acreditou que, a partir de agora, todos aqueles que têm fome e sede de justiça, que tiveram seus direitos violados e desprezados pelos poderosos e pelos sistemas burocratizados e por mecanismos que desumanizam, encontrarão justiça. Em tudo isso, Jesus acreditou e expressou a sua convicção naquela grande proclamação programática que chamamos "O Sermão da Montanha" (Mt 5, 3-12; Lc 6, 20-23).
As suas palavras exprimem uma possibilidade alternativa que já pode começar a se tornar realidade. Isso, porque os aflitos não podem esperar até um futuro distante para serem consolados, e aqueles, cujos direitos foram violados, precisam de defesa agora. Jesus estava convencido de que a humanização de todas as relações humanas e de todas as estruturas deste mundo pode ser realizada agora, e é para esse trabalho que Ele nos convidou. Se Jesus, no qual reconhecemos Deus, acreditou em tudo isso, então, nós também deveríamos acreditar.
E, acreditando nas suas palavras, é agora que devemos começar a realizar aquilo em que Ele acreditou. Porque é, através de nós e de nosso agir, que a convicção de Jesus se torna realidade, aqui e agora, sem atraso nenhum, na situação concreta em que nos encontramos. Em vez de ficar na ilusão de que em algum futuro, as estruturas opostas às expectativas de Jesus se transformem de maneira mágica, devemos começar a transformá-las, agora, neste momento, em nosso presente.



Bibliografia
"Escatologia da Pessoa"de Renold J. Blank, Paulus,3.ª ED./2000, 343 PÁG.s
"A morte em questão" de Renold J. Blanck, Ed. Loyola n.º 2.ª ed. 2001